A carona


– Bom dia, amor! Bom trabalho! – despediu-se Lúcia à porta, ainda de pijama.

– Bom dia! Te amo! – retribuí, beijando seus lábios e caminhando até o elevador. Ela  sempre aguardava o aparelho chegar, trocávamos beijos atirados com as palmas das mãos e eu seguia em frente.

Era assim todos os dias, há mais de dez anos. Mas engana-se quem pensa que naquela singela frase estava apenas uma despedida casual. Há sempre muito mais por trás das palavras, latente e ao mesmo tempo, tão incisivo. Minha esposa, na verdade, com o sorriso mais carinhoso do mundo, dizia: “Bom dia, amor! Te espero mais tarde. Me ligue pelo meio da manhã, só para eu me sentir querida! Não dê confiança para aquelas garotinhas da sua repartição, hein? Estou de olho em você. E não quero saber de caroninhas, festinhas de amigos ou qualquer coisa do tipo. Ouviu bem? E se fosse eu? Você ia gostar? Te amo! Até mais tarde!”. Não tinha percebido? Pois foi isso mesmo.

O alarme do carro ecoou na garagem úmida e mal iluminada. Eu já havia reclamado com o síndico, ele se mostrava atencioso, mas era apenas fachada, não resolveria nada no fim de contas. Liguei o carro e deixei-o aquecendo por alguns minutos, bem menos do que eu desejava, na verdade. O relógio do autorrádio marcava quase quarenta minutos de atraso. Mas… não era possível!

Pelo sim e pelo não, resolvi confirmar se estava realmente atrasado. Procurei pelo relógio de pulso, que não se encontrava em meu braço – devo tê-lo esquecido sobre a mesa; o celular estava completamente descarregado. Ora, como isso foi acontecer?!

Interrompi o aquecimento do motor e manobrei apressadamente entre as vagas apertadas da garagem, agora todo minuto era precioso. Saí do prédio cantando pneus, mas assim que virei o quarteirão o motor começou a falhar, e o indicador do óleo lubrificante acendeu no painel, o que poderia ser uma infinidade de coisas: falha elétrica, eletrônica, bomba de óleo, ou algum problema causado por não aquecer o motor corretamente… Droga! Parecia que tudo conspirava para o meu atraso!

Encostei o carro num recuo para coletivos: talvez desligá-lo para religar logo em seguida resolvesse meu problema. Desta vez eu o deixaria aquecer o suficiente e seguiria para o meu trabalho em no máximo vinte minutos. E ainda teria uma desculpa mais justa e aceitável para o atraso do que a já manjada e esfarrapada “acordei tarde”.

Simples assim.

Seria simples assim, se Poliana não tivesse aparecido à janela do carro no exato momento em que eu o estacionava. Filha caçula de um funcionário público aposentado e uma enfermeira, morava com os pais em um andar abaixo do meu.

– Oi, João! Foram os anjos que te mandaram aqui! – abordou-me a moça, em tom solene.  Devia ter seus vinte e poucos anos, talvez um metro e sessenta e cabelos loiros lisos que esvoaçavam e espalhavam perfume por mais simples que fossem seus movimentos.

– Oh! Olá Poliana… – respondi um pouco sem graça. Os anjos deviam estar de sacanagem comigo hoje.

– Acabei de perder o ônibus e tenho uma prova importantíssima na faculdade hoje! Não pode me dar uma carona? – pediu suplicante apoiando-se sobre a janela, expondo seu decote de forma constrangedora à altura do meu rosto.

– Sabe o que é Poliana… eu parei aqui justamente porque o carro deu um probleminha e… – tentei argumentar a fim de escapar dessa carona e livrar minha consciência da culpa de burlar a recomendação de Lúcia, mas quando religuei o carro, ele funcionou como se nada tivesse acontecido, sem luz no painel, sem falha, sem nada.

– Oh! São os anjos! – repetiu, olhando para cima como se agradecesse aos céus.

– Poliana, é que… – tentei retomar a arguição, mas fui interrompido.

– Não se preocupe João, eu sei que a Lúcia não gosta que você dê carona a mulheres, mas ela vai entender, você vai ver. Pode deixar que eu mesma falo com ela sobre isso.

– Bem, neste caso… – suspirei aliviado. Não se poderia dizer que as duas eram grandes amigas, mas visitavam-se com frequência, tinham alguns assuntos em comum… enfim, era uma amizade que se fortalecia com o tempo.

Poliana sorriu e agradeceu, entrando no carro. O deslocamento de ar impregnou o interior do automóvel com o delicioso aroma de morango silvestre. A faculdade da moça ficava no mesmo caminho para o meu trabalho e realmente seria uma tremenda sacanagem não dar essa carona para ela. Lúcia que me perdoasse, mas… que mal haveria?

– Você não sabe o favor que está me fazendo. Nem sei como agradecer por isso… – sorriu.

– Ora, não precisa agradecer… – respondi ao olhar o retrovisor para manobrar o carro, aproveitando o movimento para espreitar seu maravilhoso decote. – Desculpe o mau jeito, mas… a Lúcia não gosta mesmo que eu dê caronas. Você entende, não é?

– Sabe, eu li certa vez que o ciúme, na verdade é uma insegurança gerada por conta de sua própria infidelidade ou desejo de trair.  – comentou subitamente.

– Como é que é? Quer dizer então que a Lúcia é infiel?

– Não fui eu quem disse isso, mas você mesmo. Na verdade, em seu íntimo você sabe que isso pode acontecer. O que lhe garante de que o motivo para ela pegar no seu pé não seja sua própria infidelidade?

Calei. O que me garantia isso? O que poderia garantir isso a qualquer um?

– Nada. – respondi olhando-a de soslaio, ela me retribuiu o olhar com um sorriso sacana e maquiavélico.

– Não tenho prova alguma na faculdade, isso foi só um pretexto para estar a sós com você. Faz tempo que eu aprendi que precisamos saber aproveitar as coincidências e não deixar escapar as oportunidades. E quando o encontrei ali, não pensei duas vezes. Então, por que não se atrasa um pouco e me leva para um lugar mais reservado?

Virei o quarteirão e o motor do carro enfraqueceu. Encostei-o em um recuo e desliguei, para religá-lo: talvez fosse a bomba de óleo. Poliana olhava-me pedinte, exibindo seu decote de maneira perturbadora.

– Não se preocupe, eu sei que a Lúcia não gosta que você dê carona a mulheres, mas ela vai entender, você vai ver.
George dos Santos Pacheco
 
 
* Publicado na Revista Êxito Rio, em  15/02/2016.

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